23 de novembro de 2009

Pesquisa

Para a avaliação desta disciplina, diferentemente da proposta inicial de montar uma peça teatral em grande grupo com toda a turma, foi decidido realizar vários projectos teatrais em pequenos grupos. As directrizes dadas pelo professor estabeleceram o número de componentes do grupo, entre 5 e 7, a duração da peça, máximo 10 minutos, e a possibilidade de escolher entre teatro em palco, teatro das sombras, teatro de objectos ou uma mistura destas diferentes técnicas que explorámos nas aulas. A peça ira será apresentada na última semana de aulas, mais especificadamente no dia 5 de Janeiro, pelo qual, tendo um grupo a seguir ao outro numa única sessão, o factor tempo torna-se fundamental, assim como a relativa simplicidade das cenografias e dos figurinos. No final não será preciso entregar o guião da peça, mas sim uma reflexão sobre o trabalho, quer de grupo, quer acerca do papel desempenhado pessoalmente na construção. Este primeiro post, assim como os outros que se irão seguir, fazem parte desta mesma reflexão final.

O nosso grupo juntou-se, além de afinidades de horários e de método de trabalho, na certeza de querer fazer teatro em palco, ou pelo menos fazer do teatro em palco a parte principal do nosso espectáculo, e na vontade de montar não uma peça infantil, mas sim uma peça para adultos, com temas sociais, políticos e provocatórios. Esta segunda escolha derivou dos gostos pessoais de alguns membros do grupo já, como referimos no último post  espectadores e apreciadores do teatro civil, experimental e provocatório.

Para experiencia pessoal no meu trabalho de contador sei que a parte da pesquisa e da escolha é, simultaneamente, a fase de trabalho mais difícil e mais interessante, influenciando claramente todas as seguintes. Por este motivo as fontes da nossa pesquisa foram multíplices e diferenciadas. Num primeiro momento procurámos, nas nossas bibliotecas domésticas, em livrarias e bibliotecas públicas, guiões e textos de curtas teatrais, porque, como já referimos, o factor tempo é fundamental neste trabalho. Todavia não encontrámos nada que nos desse a impressão de ser realizável por nós, amadores, nem nada que despertasse a nossa curiosidade. Autores italianos importantes no panorama internacional pelas suas peças civis e provocatórias, como Dario Fo, premio Nobel pela literatura em 1997, ou Marco Paolini, têm peças curtas, mas demasiados ligadas a factos e escândalos italianos, quase completamente desconhecidos ao público português, como “Morte Accidentale di un Anarchico” de Dario Fo, que implicariam uma grande parte de contextualização ou, na pior das hipóteses, uma não compreensão global da peça. Também outros autores estrangeiros, como Bertol Brecht, foram rapidamente postos de lado devido às dificuldades não só de compreensão, mas também de representação dos seus textos.

Deixando do lado os textos teatrais começámos à procura, na internet, de espectáculos pequenos de companhias locais, quer italianas quer portuguesas. Muitas vezes estas companhias desenvolvem um trabalho interessante no campo do teatro experimental e de denúncia. Demo-nos conta que, quer em Portugal, mas maioritariamente na Itália, são organizados concursos para curtas teatrais onde participam jovens escritores e pequenas companhias. Mas também nesta área não encontrámos nada nem em forma de guião nem em formato vídeo, para além de uma companhia italiana que conseguiu sintetizar “I Promessi Sposi” de Alessandro Manzoni, um romance de 38 capítulos que se estuda em todos os liceus italianos, em 10 minutos, utilizando canções da música ligeira italiana para desenrolar toda a trama.

Na nossa terceira tentativa resolvemos pedir ajuda aos amigos, alguns deles já com experiência no mundo do teatro e do circo, para receber sugestões e pontos de partidas para o nosso trabalho. Simultaneamente começámos a explorar o mundo dos contos e das novelas, sabendo que, com os devidos arranjes, poderiam ser um bom texto. E foi mesmo cruzando a nossa vontade de fazer uma peça irónica e provocatória com as novelas de autor que nos cruzámos com Decameron de Giovanni Boccaccio. Para mim esta é a terceira abordagem a este clássico da literatura italiana, depois da análise feita no liceu e depois duma pesquisa, ou caça, à procura de contos para contar.

O Decameron, escrito entre 1349 e 1351 por Boccaccio, é ambientado na altura na peste negra em Florença, onde, para fugir ao contágio, sete raparigas e três rapazes da aristocracia citadina decidem refugiar-se numa quinta. Assim, para se entreterem e para divertirem ao longo dos dias decidem que, cada jornada, cada um iria contar um conto para deliciar os outros. Cada dia teria também um rei, para estabelecer a ordem, e um tema para seguir. Assim, estes dez jovens contam cada um, por dez dias, uma novela, num total de cem contos. Além do tema do dia pode-se encontrar, numa análise mais apurada, um fio condutor de cada contador, ao longo de todos os dias. Os temas dos contos são picantes e provocatórios, como nos gostamos, e tem como protagonistas mulheres infiéis, maridos traídos, padres luxuriosos e freiras tentadoras que organizam mil e um truques e enganos para chegar aos seus fins, às vezes conseguindo o seu fito, por vezes sendo castigados por Deus ou pelo destino.

Uma vez escolhido o livro de partida foi só escolher a novela e para isso tivemos de ter em conta quer os 10 minutos permitidos, quer o número de participantes do nosso grupo, seis pessoas, sendo que todos queriam, se possível, representar algum papel, e também o facto de ter só uma rapariga no grupo. Inicialmente lemos, numa versão italiana readaptada e modernizada por Aldo Busi, um escritor italiano, os vários temas de todos os dias, descritos pelo Boccaccio e conservados inalterados pelo curador da nova edição. Entre estes escolhemos o terceiro dia, onde se apresentam quem, graças à inteligência e ao engenho, alcança o objectivo tão desejado ou recupera a coisa perdida. Entre estas novelas escolhemos a que nos despertou mais curiosidade e que nos pareceu mais realizável pelo nosso grupo, chegando assim à decisão de começar a trabalhar a primeira novela da terceira jornada intitulada, na versão italiana, “Os Cornos de Cristo”.

A seguir, foi a altura de confrontar as duas versões italianas que conseguimos com a versão portuguesa traduzida por Fernando Melro e editada pela Europa-América em 1982. Nesta versão são apresentadas também as xilografias feitas em 1492 que editamos neste post como primeira apresentação, numa só imagem, da nossa história. Na próxima sessão iremos analisar a trama, cortar as cenas que, infelizmente, não iremos conseguir representar por motivos de tempo e começar a escrever o guião, escolhendo assim os papéis de cada um, as entradas e as saídas, as falas, a cenografia, os figurinos e a maneira de representar as cenas mais explícitas.

As razões da nossa escolha residem no facto de termos encontrado, finalmente, uma novela, como ponto de partida, que permite ser cortada e reduzida a 10 minutos de cena, que dá a possibilidade a seis actores de representar mais que um papel cada um, que não precisa de grandes cenografias nem figurinos complicados, mas que, sobretudo, permite-nos realizar um trabalho irónico e provocatório e ao mesmo tempo divertido, tocando temas quase tabus como o sexo e a religião. O escândalo que o Decameron provocou na sua época acrescenta, sem dúvida, o fascínio que para nós tem este texto e a possibilidade de abordar estes temas a partir dum clássico da literatura italiana permite-nos trabalhar também as temáticas da promoção da literatura e da cultura.


Xilografia do frontispício, 1492
Fonte: Boccaccio, G. (1982). Decameron. Trad. Fernando Melro. Europa-América. Mem Martins



Xillografia da primeira novela da terceira jornada, 1492
Fonte: Boccaccio, G. (1982). Decameron. Trad. Fernando Melro. Europa-América. Mem Martins